domingo, 25 de novembro de 2012

O MOÇO DO VENTO - parte 1



O vento soprava lentamente. Folhas e plantas balançavam perante a brisa que atingia a janela do casarão. Uma residência grande e conservada. Nele vivia felizmente a família Souza. Sempre tiveram de tudo. Mesmo assim o patriarca sentiu que era hora de atingir novos horizontes. Por isso decidiu comprar uma bela mansão, que seria o novo endereço para descansar nos fins de semana e aproveitar as férias que se aproximava. O imóvel se localizava em uma bela região montanhosa, rodeada por muito verde, riachos e cachoeiras. No entardecer era possível ver o por do sol em toda sua beleza, com seu tom amarelado e grandioso.
Ali viviam Carla, a mãe, Jonas, o pai e a filha de nove anos Cristiane, que neste momento levantou-se do sofá e perguntou:
—Mamãe, quando nós vamos mudar para a casa nova?
Interrompendo sua leitura a mãe diz:
—Não se preocupe, filhinha! Daqui a alguns dias estaremos lá. Você vai adorar!
Houve um silêncio neste momento. A menina pensou por alguns segundos, olhou para a janela da enorme sala e virou-se para sua mãe, dizendo:
—Espero que isso aconteça logo! Já estou enjoada e não vejo a hora de mudar daqui.
Carla olhou para a filha com estranheza, pois percebeu que a fisionomia e o tom de voz da menina haviam mudado. Sentiu que a meiguice dela tinha desaparecido. Ou estava oculta por algum motivo. O tom de voz estava mais agressivo e a testa franzida da filha começava a preocupa-la.
Cristiane sempre estudou nas melhores escolas, teve muito amor e carinho dos pais e familiares, fez muitos amigos e, agora, apresentava um comportamento que não se justificava. Com isso, Carla começou a se perguntar:
“—Por que minha filha está tão mudada?”.
Neste instante entra pela porta o patriarca da família, Jonas. Seu rosto cansado não abalava a felicidade em saber que, após mais alguns dias, estaria de férias e poderia desfrutar do novo imóvel com sua filha e esposa.
Jonas nunca teve medo do trabalho. Por isso se dedicava tanto. Com isso conseguiu um cargo de gerência geral que diariamente consumia dele atenção redobrada, desgaste físico e mental. Tudo isso era fruto das enormes exigências de seus superiores devido aos rígidos controles de qualidades da empresa.
Mesmo assim, Jonas aproxima-se das “mulheres de sua vida” e diz com um belo sorriso no rosto:
—Como vão minhas garotas? —disse ele em tom brincalhão.
—Oi, querido! —disse Carla beijando o marido apaixonadamente— Como foi seu dia hoje?
—Muito bom! Cansativo, mas bom! Estamos quase terminando de pôr tudo em ordem. E daqui a alguns dias... férias!
—Que bom!
—Que bom? Que maravilhoso! Já pensou? Sairmos daqui e partir para nossa mansão nas montanhas? Não vejo a hora!
Ansiosamente Cristiane entra na conversa:
—Quando é que nós vamos sair daqui, papai?
—Olá, meu amor! —disse Jonas todo alegre, abraçando sua filha e beijando-a no rosto— Como foi seu dia?
Irritada a menina diz:
—Não interessa meu dia! Só quero saber quando é que vamos sair daqui. Não vejo a hora de sumir deste lugar. Nunca gostei daqui, mesmo!
Jonas franziu a testa com estranheza. Não estava reconhecendo sua pequenininha. Era como se estivesse falando com outra pessoa. Mesmo assim estava disposto a dialogar com a filha, pois não queria que nada acabasse com sua felicidade naquele momento.
Respirou profundamente, apoiou as mãos nos ombros da filha e disse:
—Olha só, filhinha! O papai está terminando de organizar tudo. Daqui a alguns dias eu, você e mamãe estaremos na casa nova. Está bem? Pode ficar tranquila que vai dar tudo certo.
Friamente, Cristiane olha no fundo dos olhos do pai e diz:
—Mais ou menos! O que eu queria, mesmo, é sair daqui agora.
—Calma, filhinha! Por que você está tão ansiosa? O papai não cumpre sempre o que diz?
Ela afirma com a cabeça.
—Então não há motivo para esse nervosismo todo, querida. Agora me diga uma coisa: o quê está te incomodando? Por que você quer ir embora?
Cristiane manteve-se calada, sem responder. Olhou profundamente nos olhos do pai, virou-se para a mãe encarando-a com o mesmo olhar gélido. Em seguida correu até a escada e subiu em direção ao seu quarto.
—O quê aconteceu com ela? Está estranha! Nem parece a mesma pessoa.
—Eu também não entendi nada. Ela está estranha desde o dia que fomos comprar a mansão. Mesmo não dizendo nada, vi quando ela trouxe uma pedrinha que estava no quintal de lá. Eu achava que era apenas uma brincadeira de criança. Mas depois disso percebi que ela tem estado mais quieta. Será que tem alguma ligação com esse comportamento dela?
—Acho que não! Mas acredito que isso só tenha aumentado a ansiedade dela. Depois que descansarmos vou tentar pegar essa pedra dela para ver o que acontece. Ela não pode continuar assim. Está muito estranha.
Enquanto os pais discutiam sobre o comportamento da filha, a madeira do assoalho rangia a cada passo da menina enquanto penetrava nos tímpanos de Cristiane na medida em que se aproximava da porta do seu quarto. Um vento frio passou diante dela no instante em que ia tocar a maçaneta. Porém, esta virou sozinha, abrindo a porta daquele “cantinho inocente”.
Paralisada, Cristiane sentiu seu coração disparar. Estava assustada por causa do desconhecido e surpresa com aquele fenômeno estranho. Mesmo assim ela ainda era uma criança. E isso mantinha sua mente livre de certos medos e superstições. Por esse motivo ela decidiu entrar no quarto tranquilamente, enquanto a brisa que vinha pela janela aberta tocava seu rosto.
No instante seguinte, Cristiane começou a brincar com sua boneca como se nada tivesse acontecido.
Ela estava sentada em sua cama. Conversava tão inocentemente com a boneca que não percebeu o forte vento, acompanhado de uma gélida neblina, penetrando seu quarto através da porta. E, na medida em que aumentava, ela ficava cada vez mais densa e branca. A janela também serviu como porta de entrada para aquele estranho fenômeno, no mesmo instante em que ia abrindo-se lentamente o pouco que ainda estava fechada.
Quando percebeu o que estava acontecendo, Cristiane abraçou fortemente sua boneca e recolheu-se no meio da cama. O barulho das molas do colchão tornava aquela situação ainda mais assustadora. O tecido do lençol começou a se enrugar sobre seus pés, misturando-se com o desenho de seu vestido. Seus olhos brilhavam diante da luz da lua que penetrava pela janela. Seu coração palpitava mais velozmente. Sua respiração ficou ofegante. Com isso, uma gota de suor brotou de sua testa, demonstrando que, agora, a menina começava a ficar com medo.
Uma forte luz arredondada formou-se no interior do quarto, enquanto a densa névoa ia modelando algo assustador diante dos olhos inocentes de Cristiane. Aos poucos uma forma quase humana começou a se materializar, dando lugar a braços, pernas, mãos, pés e um rosto tão desfigurado quanto uma foto antiga, amarelada, suja e desbotada. Um odor forte atingiu as narinas de Cristiane no mesmo instante em que começou a lhe dar náuseas. Era fétido e insuportável! Seus olhos se irritaram e ela recolheu-se ainda mais entre o lençol, apertando-o com força ao mesmo tempo em que suas mãos começavam a suar. E, enquanto o odor desagradável ia se dissipando pelo ar, a figura grotesca e fúnebre do espectro começava a ganhar “vida”. Tinha uma aparência tranquila! Mas seu rosto assustava. A pele era pálida e enrugada, demonstrando a idade avançada e incalculável, apresentada em suas linhas de expressão. O cabelo “desbotado” tinha dificuldade em manter um penteado decente. Dentes podres e fétidos ajudavam a compor o rosto. Sua respiração era ofegantemente angustiante. Finalmente, no interior de seus olhos era possível perceber a eterna marca da morte. Eram brancos e não possuíam íris.
Cristiane, completamente assustada e sem palavras, agarrou-se em seu travesseiro. No instante seguinte conseguiu dizer baixinho, com voz trêmula e suspirante:
—Ô moço! Por favor! Não me machuque!
Não houve resposta. O tenebroso espectro manteve-se parado no meio do quarto, imóvel, ao mesmo tempo em que olhava para a inocente criança. Ele a analisava meticulosamente, observando suas mãos, seus olhos, seu cabelo, sua pele suada, sua respiração ofegante, ao mesmo tempo em que sentia um cheiro suave do perfume infantil. Algo que já não sentia há anos.
Cristiane, percebendo um silêncio cada vez mais assustador, olhou novamente para aquele ser frio e imóvel. Queria ter a certeza de que nenhum mal lhe aconteceria.
Após materializar sua mão, o espectro encosta no ombro da menina e diz baixinho:
­—Não tenha medo!
Após ouvir essas palavras a menina saiu da posição defensiva. Ficou completamente desarmada. Com isso percebeu que aquela doce frase tinha mais representações do que podia imaginar. Então, Cristiane largou o travesseiro ao mesmo tempo em que começou a se aproximar da estranha criatura, curiosamente.
Em seguida ela adiantou-se dizendo:
—V-você fala? — gaguejou ela.
—Mas é claro que sim, minha querida! E não se preocupe, pois não vou te machucar.
Enquanto Cristiane ia se acalmando, decidiu fixar o olhar no fundo daquele globo ocular branco como a neve. Queria adivinhar os pensamentos da estranha criatura.
Mas esta se adiantou dizendo:
—Eu só vim aqui para adverti-la de uma coisa. — disse o espectro.
—Do que você está falando? — perguntou a menina curiosamente.
—Não vá para aquela casa.
Surpresa e já sem sentir medo ela interroga:
—Por quê?
—Não gostará de saber. Esse é apenas um conselho que lhe dou.
Curiosa, a menina insiste:
—Então me explique moço! Como é que eu vou entender se você não me disser?
O espectro admirado com a maturidade e interesse da menina decide falar. Então, aproximou-se da cama, acompanhado da gélida névoa que o envolvia, e se sentou na lateral, próximo de Cristiane que, mesmo sem sentir medo, começou a admirar a horrível aparência de seu visitante. Enquanto isso a suave luz da lua penetrava pela janela no mesmo instante em que tocava o rosto de Cristiane, iluminando-o.
Toda aquela situação mórbida fez com que Cristiane suspeitasse do que viria pela frente. Mas, infelizmente, ela precisava ouvir.
Lentamente a face cadavérica do tenebroso espectro vira-se para a menina, encarando-a profundamente. Sua face horrenda impressionaria qualquer mortal. Mas, naquele momento, serviu de base para uma terrível história que estava apenas começando.
Com uma voz rouca e arrepiante, o espectro começou a falar!
—Há muitos anos morou naquela casa um homem muito rico e poderoso. Ele possuía uma fortuna incalculável. Porém, todos sabiam a origem de tanto dinheiro. Durante muitos anos ele sacrificou e escravizou muitos empregados. Eram forçados a atender todos os seus caprichos. E um deles era capturar meninas virgens para satisfazer suas bizarras orgias sexuais. Sua esposa fingia não saber de nada, pois preferia sofrer calada ao invés de se submeter às constantes torturas que aconteciam no porão da mansão toda vez que não atendia aos caprichos do marido. Com isso o tempo passou e ele não mudou. Pelo contrário! Tornava-se cada vez mais sangrento, arrogante e impiedoso. Tinha conseguido dominar a cidade com suas ameaças às famílias humildes que não cediam parte de seus bens materiais, além das filhas. Mas, num dia oportuno e insatisfeito com o que já havia conquistado, ele decidiu ser mais ambicioso. Fez um pacto com o diabo exigindo a vida eterna e que não deixasse de ter prazeres. Porém, num momento de sua maldita vida, tropeçou no pacto e deixou de cumprir uma exigência de seu “mestre”. Como estava cheio de si e muito mal acostumado com as mordomias, achou que poderia enfrentar o demônio. E esse foi seu maior erro. Então, no mesmo instante foi levado de corpo e alma para o inferno. Lá, quando tudo parecia terminado, veio a grande surpresa! Mesmo sofrendo o homem não desistiu. Conseguiu falar diretamente com o “mestre das sombras”. Disse-lhe que poderia se redimir trazendo-lhe almas para o inferno. Em troca continuaria habitando a Terra e sua casa. Como bom negociador, o Diabo aceitou a oferta. Percebeu que dentro daquele coração cheio de ódio e rancor estavam todos os ingredientes necessários para continuar sua luta em habitar a Terra. Foi aí que tudo piorou. O homem foi enviado novamente à Terra, mais precisamente a casa que habitava, e começou seu eterno e trabalho. Tomou a providência de amaldiçoar todos os objetos da mansão, além das terras de suas propriedades, de modo que, dessa forma, pudesse levar as almas daqueles que ali pisassem ou levassem algo que não lhe pertencesse. Os anos passaram e, finalmente, depois de muito tempo, ninguém mais pisou lá. Eu fui o último que habitou aquela casa e posso afirmar com toda a certeza: CUIDADO! Não vá ou traga nada de lá. Caso contrário ficará como eu, vagando sem rumo e sem paz. Isso é o pior tormento que uma alma pode ter. Uma vida eterna sem luz.
Após ouvir as tenebrosas palavras, Cristiane se lembrou do que havia feito. Sabia da pedra que guardava daquele local. Começava, agora, a sentir medo.
Todas aquelas palavras duras e sombrias penetraram em seus tímpanos como uma verdadeira maldição. Então, desesperadamente, ela aproximou-se do espectro e tentou tocá-lo, ao mesmo tempo em que perguntou:
—Moço, o quê eu tenho que fazer? Tô ficando com medo!
Com isso, sua mão passou pelo corpo sem vida e sem forma, atingindo o ar. Não era possível tocá-lo. Em seguida, a névoa e o corpo do espectro começaram a se dissipar lentamente, no mesmo instante em que uma cavernosa voz fez-se ouvir:
—Tomem cuidado!
A menina, completamente desolada, sem saber o que fazer e no que pensar, levantou-se da cama e saiu desesperadamente de seu quarto. Sua expressão de medo não a deixou pensar. Então, num piscar de olhos, tropeçou no degrau e rolou pelas escadas, batendo a cabeça várias vezes na madeira dura enquanto via o mundo girar. Por sorte seus pais ainda estavam na sala para acudi-la.
Carla, desesperadamente, levantou-se do sofá gritando:
—Cristiane! Meu Deus! Me ajude!
Correu em direção à filha, acompanhada de Jonas. Pensou que o pior tinha acontecido. Mas esse tinha sido apenas o primeiro aviso.
Batendo no rosto ensanguentado da filha, Carla e Jonas tentam reanimá-la. Estava quase inconsciente. Mas, após alguns segundos, Cristiane conseguiu abrir os olhos. Sua expressão era de espanto. Estava branca, gélida e com a boca completamente seca. Mesmo assim, conseguiu retirar forças para segurar a mão da mãe, e dizer com muita dificuldade:
—Mãe... por favor! Eu não quero mais ir embora...
—Calma filhinha! Não faça esforço!
—Mãe! “Me ouve!” —gritou a menina— Eu não quero ir pra lá.
Carla e Jonas, assustados com o comportamento da filha e com a situação naquele momento, esquecem-se por uns instantes da queda e do sangue no rosto de Cristiane, que escorria cada vez mais vivo, ao mesmo tempo em que ia coagulando e criando cascas em determinadas partes da pele.
—Filha, —disse Jonas— o quê está acontecendo com você? Eu e sua mãe estamos preocupados!
—Pai, “me ouve”! Por favor, não quero mais ir embora! Por favor! Por favor... O “moço do vento” falou para eu não ir. “O moço do vento”... “o moço... do...”
Sua voz foi ficando cada vez mais fraca, até o momento em que desmaiou.


Fim da parte 1 - Continua...

Nenhum comentário:

Direitos Autorais Deste Blog

Licença Creative Commons
Contos Fantásticos - Terror, Amor e Suspense de Fernando Magaldi é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Baseado no trabalho em http://contosfantasticosdavidamoderna.blogspot.com.br/.
Permissões além do escopo dessa licença podem estar disponível em fermagaldi2@gmail.com.