quinta-feira, 2 de abril de 2009

A Mente Que Germinava


      

Aquele quintal era lindo! Todas as pessoas que passavam pela rua admiravam o pequeno pedaço de verde no meio daquele barulhento e poluído bairro da cidade grande. Muitos se sentiam no meio da natureza, principalmente o homem do correio que quase sempre trazia correspondências dos filhos do senhor que morava na humilde, porém conservada casa. Ele gostava de sentir o cheiro das folhas, das flores, das frutas... Sim! Havia vários pés de fruta naquele quintal. Bananeiras, goiabeiras, parreira de uva rosada, amoreiras e uma cerejeira. Essa era especial, pois um dos netos do senhor da casa havia plantado a sementinha e, desde então, ele tem acompanhado o crescimento da planta e do garoto. Era curioso ver como que aqueles dois seres vivos cresciam depressa! Enquanto um floria antes de dar frutos o outro deixava o cabelo crescer e, o que antes era liso, agora começava a formar lindos cachos dourados.

O pé de cereja no auge de sua beleza, que era quando maduravam os frutos, conseguia se destacar das demais plantas pelo simples fato de possuir cores mais fortes em seus galhos. O vermelho das frutas ofuscava o amarelo da bananeira, o roxo da parreira de uva, o verde da goiabeira e tantas outras plantas belas que, nem por isso, eram menos importantes do que ele.

Então, como de costume, o carteiro aproxima-se do portão e diz, em voz alta e firme:

-Correio!

Espera mais alguns segundos e tenta novamente:

-Correio!

No instante seguinte surge o senhor da casa. Ele aproxima-se do portão e diz:

-Bom dia, Jorge!

-Bom dia, seu Antônio! –diz o carteiro- Pensei que não tinha me ouvido.

-Não, senhor! É que eu estava lavando a louça. Minha esposa está de cama e não pode fazer esforço, entende?

-Oh, sim! Desculpe! –disse o carteiro meio sem-graça- Eu não sabia...

-Não se preocupe! Não é nada grave. Só está com uma dorzinha na coluna. Mas depois passa.

-Melhor assim! Bem... tenho mais essas surpresas pro senhor.

Seu Antônio pega as duas cartas e lê rapidamente. No instante seguinte revela com um sorriso nos lábios:

-Nossa, que saudade! São cartas da minha filha e do meu filho. –deu uma pequena pausa e prosseguiu- Muito obrigado!

-De nada, seu Antônio! Tenha um bom dia e até logo.

-Obrigado!

O senhor olha para as cartas com emoção. E a emoção de reencontrar os filhos mais uma vez, mesmo que fosse apenas pelo contato com as palavras, dominou seu coração.

Exibindo um largo sorriso ele se vira, após fechar o portão de sua casa, e sobe as escadas alegremente. Estava ansioso para ler as cartas para sua esposa. Afinal, como ela não podia fazer muito esforço, umas belas palavras chegariam numa boa hora.


**********

A tarde caía lentamente. Enquanto isso o menino brincava no quintal. Sua mente era tão fértil quanto a terra que germinava as plantas daquele pedaço de chão escondido no meio da cidade.

Tinha em suas mãos alguns frascos de remédios velhos que ele gostava de misturar seus conteúdos e brincar de cientista. Numa base de cimento ele improvisou a mesa do laboratório. Fez uma pequena fogueira com alguns gravetos que estavam apoiados abaixo de uma lata, da qual ele teve o cuidado de recortar as laterais fazendo surgir, assim, os pés do “fogão”. Em cima dessa base ele colocava alguns vidros e misturava os xaropes e outros remédios inofensivos e imunes a explosão. Sua mãe não gostava de “podar” suas fantasias. Por essa razão separava com cuidado o que era inofensivo para seu filho. Afinal, sentia-se orgulhosa da vontade de aprender e pela curiosidade do menino, ao mesmo tempo em que se deliciava com o sorriso inocente do garoto.

Ele pegou um frasco com um xarope vermelho e disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça:

-Agora eu vou criar a fórmula da juventude.

Misturou o líquido com o que já estava no vidro sobre o fogo e continuou:

-Depois disso ninguém mais vai ficar velho e nem vai morrer. Vou ser o maior cientista do mundo. –misturou um pouco os dois líquidos e, depois de alguns segundos, prosseguiu- Mamãe vai ficar orgulhosa de mim.

E assim ele continuou com sua brincadeira até o anoitecer.


**********

Depois de um refrescante banho e de um delicioso jantar preparado por seus avós o menino foi para seu quarto. Adorava seu mundo. Era ali que ele liberava sua imaginação, representada por vários textos, desenhos, esculturas em argila e algumas pinturas que ele criava sobre as camisas mais envelhecidas.

Com a pureza das palavras ele fazia alguns “livros” em folhas reaproveitadas. Algumas folhas eram papel de pão que, ao invés de revoltá-lo por não ter dinheiro para comprar cadernos pautados, usava a situação para imaginar que criava pergaminhos ou mapas do tesouro onde ele acreditava que, depois de alguns anos, seriam encontrados e estudados. Seu nome ficaria famoso e isso o agradava.

Nos desenhos ele imaginava universos diferentes. Criava monstros, pássaros, naves espaciais e seres de outros planetas. E era na simplicidade de seus traços que surgiam as belas imagens. Muitas delas admiradas pelas pessoas que visitavam sua casa e que sempre eram abordadas pelo menino ansioso em mostrar para o mundo suas idéias criativas e revolucionárias.

Quando chovia ele aproveitava o barro avermelhado de seu quintal para esculpir alguns bichinhos. Depois de secos ele os pintava com sobras de tintas usadas em recentes reformas de sua casa ou criava seu próprio material extraindo as cores das pétalas de rosa e das flores do jardim de sua avó, onde ele misturava com a água que fervia em seu “laboratório”, formando, assim, o líquido precioso usado para tingir suas criações.

Já nas caixas de papelão que ele ganhava quando ia ao mercado para seu avô, reaproveitava o verso, pois este estava limpo e livre de palavras e logomarcas de produtos. Cuidadosamente ele recortava em pedaços retangulares para simular as telas dos grandes mestres da pintura. Com muita criatividade pintava sobre aquele frágil derivado da celulose todas as suas idéias.

Enfim, depois de todas essas atividades, o menino encontrava um tempo para rezar e dormir. No dia seguinte começava tudo de novo.


**********

Após uma bela noite de sono ele se levantou disposto. Tomou, então, um café ralo e comeu algumas torradas feitas com “pão dormido”. Preparava-se para ir à escola, pois não podia se atrasar. Afinal, sua mãe era sempre muito exigente e enérgica quando fosse preciso. Como não gostava de decepcioná-la fazia tudo direitinho, crendo sempre que, com isso, ganharia o sorriso e o apoio dela em todos os seus sonhos. Porém, naquela manhã, algo o deixou muito triste.

Seu Antônio descobriu que precisaria cortar algumas árvores por causa da proliferação das formigas que estavam começando a infestar a casa. Como já tinha uma idade avançada não possuía a mesma força de sua juventude. Com isso ficava cada vez mais difícil fazer a manutenção do quintal sozinho. Precisou pagar um homem forte e bem disposto para podar o quintal. Infelizmente o pé de cereja, plantado há tantos anos pelo menino, e com a ajuda do seu Antônio, estava nesses planos. Teria que ser cortado.

Quando o menino soube da notícia ficou revoltado. Não queria conversar com a mãe, com os avós e nem com os amigos. Estava terrivelmente magoado. Afinal, aquele pé de cereja o acompanhou durante toda a sua infância e era duro ver que agora ele iria embora tão de repente.

Depois de muito pensar o menino teve mais uma idéia brilhante: iria imortalizar o pé de cereja. Pensou em sua fórmula da juventude e viu que não tinha como dar para a planta porque ela não tinha “boca” para beber. Decidiu, então, pintá-lo sobre o papelão e, com suas tintas alternativas, teria que criar uma fórmula duradoura, pois sabia que a tinta sumia com o tempo. E isso o desanimava.

Tentou esfriar a cabeça encostando-se no pé de cereja. Abraçou-o como se fosse a última vez. Sentiu, então, uma imensa felicidade. Não queria mais sair dali.

Inesperadamente algo acontece. Uma cereja muito madura caiu sobre sua camisa branca. A fruta era consistente e tinha um caldo forte e vermelho que envolvia um caroço, protegido por uma película fina e transparente. Havia manchado sua roupa de tal maneira que ele não conseguiu mais tirar. Foi aí que veio-lhe mais uma idéia: faria uma tinta grossa com o caldo da cereja, misturada com suas outras fórmulas secretas. Anotou tudo numa folha para não esquecer e seguiu em frente com seu projeto.

Algum tempo depois parou diante do pé de cereja e escolheu o melhor ângulo para pintá-lo. Queria que ficasse lindo, de modo que, com o quadro em suas mãos, pudesse dizer a todo mundo que ele havia feito tudo aquilo. Desde a plantação do pé à imortalização de seu “amigo vegetal” naquele pedaço de papelão.

Depois disso o pé foi cortado, juntamente com as outras plantas. Diante disso o menino decidiu recolher-se em seu quarto. Ficava admirando sua pintura com saudade. Queria que seu amigo “pé de cereja” estivesse neste mundo.

De repente parou para pensar e viu que não estava mais só. Percebeu que havia feito a pintura em cima de um derivado da celulose, que também um dia foi uma árvore, e que a tinta vermelha e forte tinha sido feita através da pigmentação das frutas do seu amado pé de cereja. Sentiu um imenso alívio ao perceber que havia imortalizado seu amigo vegetal por acaso. Teria sido uma coincidência ou será que Deus havia lhe dado a inteligência e a chance de imortalizar o pé de cereja de modo que esse ficasse sempre próximo do menino?

Verdade ou coincidência o garoto espalhou para todo mundo que havia criado a fórmula da juventude porque tinha ajudado seu grande amigo e que esse nunca mais morreria. Evidentemente todos riram e duvidaram. Mas ele sabia que a verdade estaria sempre à sua frente, pendurada na parede do seu quarto e com uma coloração eternamente vermelha.


FERNANDO MAGALDI

Data do texto original: 11, 12 e 13/02/2008
Data do texto final: 29/06/2008

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro amigo, lindas palavras, lindo texto, linda mente. Estou em falya com você. Espero poder dar notícias em breve. Continue! Com carinho, da irmã, amiga, Priscilla

FERNANDO MAGALDI disse...

Obrigado, Priscilla! Sua visita e suas palavras são sempre bem-vindas. Obrigado pelo elogio e pelo apoio. Um abração!

Direitos Autorais Deste Blog

Licença Creative Commons
Contos Fantásticos - Terror, Amor e Suspense de Fernando Magaldi é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Baseado no trabalho em http://contosfantasticosdavidamoderna.blogspot.com.br/.
Permissões além do escopo dessa licença podem estar disponível em fermagaldi2@gmail.com.