quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Uma Gota de Esperança


"A Riqueza da Luz" é o título original do conto "Uma Gota de Esperança"

Há milhões de anos atrás nos encontramos com o primeiro ser vivo. Frágil, delicado e indefeso. Ao seu redor um imenso oceano onde águas geladas cobriam a Terra com toda a sua imensidão e pureza. Porém essa pureza também nos faz lembrar os primeiros minutos de nossa vida, onde, ao sentirmos a imensidão que está a nossa volta, nadamos como peixes no líquido amniótico. O Mundo a nossa volta era enorme, e acreditávamos ser tudo. Até que nascemos e percebemos o quanto dói crescer. Aquela luz forte, seres estranhos nos apalpando, frio, ruídos incompreensíveis... Enfim, informações demais para o início de uma vida como a de todos nós, seres vivos e humanos.

Os anos se passam e tentamos encontrar a milagrosa fórmula da felicidade, sem que para isso sintamos dor. O cotidiano e o meio social que nos cerca treina-nos a buscar cada vez mais uma felicidade imediata. Em muitos casos através dos vícios, como se a pequena ilusão daqueles “goles” fosse o suficiente para transformar toda a realidade que está a nossa volta.

Como de costume já era tarde. Altas horas da noite. Enquanto isso um corpo completamente inconsciente e alcoolizado vagava cambaleante pelas ruas imundas e becos escuros da periferia. Seu destino: O LAR! SUA CASA! E, como expectadores, sua mulher, seu filho e o cachorrinho de estimação aguardavam ansiosos mais uma vez durante quase toda a madrugada, por onde entraria através da porta o patriarca, marido e único exemplo conhecido pela criança até então de caráter, força de vontade e fé. Uma fé distorcida pelo humanismo moderno, onde o prazer do corpo se encontra sempre em primeiro lugar.

A voz mole e rouca transpassa pela porta, chegando aos tímpanos daqueles que habitavam aquela casa como o sinal de mais um martírio. Conseqüentemente o barulho das chaves ecoava como uma tortura sem fim.

Do lado de fora o pai resmunga:

-Merda! Cadê o buraco da fechadura que tava aqui? – enquanto isso suas pernas iam sustentando com o resto de força que ainda lhes restavam todo o seu corpo.

A mãe desesperada, tentando proteger o filho, diz:

-Querido, vá para o seu quarto. Papai está cansado e precisa da mamãe.

-Mas eu quero “vê ele”, mãe! Tô “cum” saudade.

Os olhos dela se encheram de alegria e dor ao mesmo tempo, transformando-se em discretas lágrimas que escorrem pelo seu rosto sofrido atingindo o tecido de suas roupas e absorvendo como uma esponja toda aquela angustiante situação.

Carinhosamente ela leva o filho para seu quarto usando palavras de conforto como só a maciez da voz de uma mãe sabe fazer. Em seguida segue em direção à porta. Toca-a fechando os olhos, faz um pequeno momento de oração e, após respirar fundo, abre-a lentamente.

Eis então que surge o “senhor do lar” em trajes lastimáveis com sua camisa desabotoada e um forte odor de álcool que exalava pela sua boca e seus poros.

No abrir da porta o ser cambaleante resmunga mais uma vez, enquanto segue para o sofá. A mãe, submissa como sempre, sacrifica-se em aceitar toda aquela situação constrangedora, acreditando que com isso continuaria sustentando seu casamento e preservaria o próprio filho.

-Mulher! –resmungou o pai- Tire minhas calças que tô cansado.

Ela obedece.

-O que tem pra comer? –perguntou ele.

-Arroz, feijão e omelete. –respondeu ela com voz trêmula.

O pai, percebendo a fraqueza da esposa, se aproveita maliciosamente da situação.

Levanta-se, puxa a esposa em direção à mesa da sala e começa a rasgar as roupas dela com extrema violência. Seu cérebro estava tão tomado pelo álcool que já havia esquecido da presença de seu filho, ignorando completamente os exemplos que deixaria para a nova geração de sua árvore genealógica.

A mãe tentou escapar, mas as mãos fortes do marido conseguiram dominar seu corpo e, no instante seguinte, começou a violentá-la.

Curioso, o garotinho observava toda aquela situação através da porta entreaberta de seu quarto, enquanto, ao mesmo tempo, ia tentando entender se tudo aquilo era um lar feliz ou se havia uma outra forma de relação conjugal entre seus pais que pudesse ser digna de exemplo para seu futuro.

O corpo da mãe balançava com violência perante o coito animal de seu marido, enquanto uma lágrima silenciosa brotava dos seus olhos, acompanhada de muita dor, sofrimento e um cheiro forte de bebida barata.

Saciado e deixando sua esposa caída no chão o “demônio do lar” recolhe-se para a cama espaçosa de seu quarto, adormecendo em seguida.

O cachorrinho se aproxima da mulher estendida no chão e cheira seus cabelos carinhosamente. Ela percebe e consegue forças para virar seu rosto, recebendo uma deliciosa lambida na bochecha e em seus lábios, através daquele ser puro e peludo.

As horas passam e termina, assim, mais uma noite que poderia ter sido perfeita para uma família feliz. Porém, dominada pela influência do vício e da fraqueza humana, vai se degradando lentamente.

Os anos se passam. O garoto cresce e consegue milagrosamente manter-se sem as influências do pai. Sua mãe nunca tinha perdido as esperanças em dar o melhor para ele. Com isso, ela conseguiu, através de muito diálogo e oração, criar o esplêndido caráter do filho, livrando-o daquela maldição social.

O rapaz, agora independente, passa a ajudar no lar com algum dinheiro. O suor de seu rosto, toda vez que chegava em casa, demonstrava seu esforço e perseverança na fé que o conduzia à, um dia, construir um lar feliz, mesmo que seus “alicerces” estivessem abalados.

Em meio a tantas loucuras, começam a surgir os primeiros sintomas daquele câncer familiar.

Num dos raros momentos de lucidez do pai, ele levanta da poltrona, onde se encontrava assistindo TV com a família, e diz:

-Já está tarde. Acho que vou esticar um pouco as pernas.

Mãe e filho observam o “homem da casa” afastar-se lentamente.

O rapaz diz:

-Bom descanso, pai!

-Obrigado, filho. –respondeu ele sem olhar para trás.

Com passos vacilantes o pai decide mudar seu rumo. Estava ficando com fome e resolve ir para a cozinha. A iluminação fraca forçava-o a enxergar com dificuldade. O corredor estreito e frio, que separava a sala da cozinha, parecia aumentar de tamanho a cada passo, como um labirinto sem fim. Inesperadamente sente um forte calafrio.

Surpreso com aquilo ele pensa:

“-Acho que preciso de uns goles. Esse frio não é normal.”

De repente as luzes se apagam. A visão se torna impossível.

Tomado pela situação ele diz alto:

-Mulher, o que está acontecendo?

Não houve resposta. Contudo ele insiste:

-Cadê vocês? Filho! Respondam...

Algo gélido toca seu ombro. Ele dá um pulo assustado. Vira-se e tenta ver inutilmente pela escuridão o que seria.

-Quem está aí? –pergunta solitariamente.

Nenhuma resposta. Agora sentiu que estava sozinho.

Um vento gélido passa pela sua nuca e, inesperadamente, algo fino e suave toca sua calça apertando delicadamente seu pênis, enquanto ia subindo lentamente pelo seu corpo, acariciando-o. Naquele instante uma sensação de prazer domina seu ser, acompanhada de um leve sorriso que, agora, aparecia iluminado por um facho de luz brotado do final do corredor.

Ao abrir os olhos uma visão de terror o abala. À sua frente a sua esposa em adiantado estado de decomposição ia acariciando-o lentamente.

Seu coração dispara, acompanhado de um grito de desespero:

-Aaaaaaiii! O quê é isso, Jesus?

Ele corre para a cozinha. O coração palpitava intensamente. Uma respiração ofegante exala de sua boca, enquanto começava a sentir uma enorme falta de ar.

Com mãos vacilantes ele tenta achar o fósforo e uma vela. Consegue acende-la com as mãos já trêmulas. A luz fraca começa a iluminar aquele local pequeno e tenebroso. Já não havia mais sinal do terror. Mas ele, para se garantir, segue em direção aos talheres, pegando uma faca afiada.

Um vento vindo do nada, acompanhado de vozes de lamentações, passa por ele. A luz da cozinha acende e nada se vê. O pai, ainda inseguro, mantém a vela acesa, aproximando-a de seu rosto. A luz da cozinha apaga-se novamente e eis que surge a mesma imagem de sua esposa. Porém, agora ela estava sentada no chão enquanto cantarolava no mesmo instante em que ninava seu filho de aparência cadavérica.

-O quê você quer de mim, desgraçada? –gritou ele desesperadamente.

Ela olha para ele, abre os lábios e exala uma infinidade de vermes, líquidos pegajosos e vozes de desespero, como se estivesse no seu interior todas as angústias e sofrimentos da humanidade.

O pai, desesperado, joga a faca tentando atingir aquela que não era mais sua esposa, pois não compreendia como toda essa situação assustadora poderia estar acontecendo. O instrumento cortante atinge o peito daquele ser. Um som de lamentação sai de sua boca, acompanhado do choro do filho.

Inesperadamente a criança diz:

-Papai, por que nos abandonou?

O pai, não entendendo nada, vai aproximando-se daquela figura grotesca e frágil, enquanto ouve com atenção suas lamúrias.

-Se não fosse a bebida, hoje seríamos uma família feliz.

O pai engole a saliva a seco. Sua respiração já não importava mais. Muito menos o cheiro fétido da carne apodrecida que estava à sua frente. A carne de sua própria família, destruída por ele mesmo.

-Lutei tanto, pai! – continuou a criança- Me afastei dos vícios. Mamãe, sempre forte e de muita fé, deu-me a base que não encontrei em você. Eu achava que você seria meu herói e, com isso, um exemplo para mim para que, quando chegasse na vida adulta, pudesse me orgulhar de ter tido um ícone em quem me espelhar.

Um choro desesperador brota da boca da mãe, enquanto os vermes mexiam-se violentamente sobre a carne apodrecida. Era uma agonia tão forte que dava para atingir a alma, enquanto era finalizada na exaustão completa de suas forças. Nesse instante decide olhar para o marido. Ele, percebendo o significado da situação, ajoelha-se e começa a chorar. Percebeu que havia destruído sua vida e que suas lágrimas não seriam suficientes para cobrir todo o oceano de insanidades, crueldades, impurezas, vícios e traições que, durante anos, brotaram de suas mãos. Exausto, ele abaixa sua cabeça e toca o ombro putrefato de sua esposa. Essa, contudo, mesmo lembrando-se dos sofrimentos que passou nas mãos daquele homem, começa a acariciar os cabelos do marido. Choro, desespero e angústia dominam o ar daquele local, fazendo-se ecoar por toda a casa.

Após alguns minutos de angústia ouve-se o som do corpo do pai desmoronar-se no chão. As luzes piscam intensamente, acompanhadas de ventos fortes e sons incompreensíveis vindos do além. Imagens se distorcem com violência e embaçam como que um espelho no vapor do chuveiro.

Eis, então, que nesse momento surge o corpo do pai estirado no chão. Ao seu redor a mãe chorosa e o filho inconformado, eram, agora, rodeados por amigos e vizinhos. Havia sido um enfarto fulminante. O pobre homem era, nesse instante, abraçado fortemente pela família. A única que teve, pois era órfão. Choravam a perda do ente querido, mesmo sabendo que esse não tivesse sido digno de exemplo, e sim apenas mais uma vítima das impurezas do mundo terreno que conhecemos. Impurezas essas que começam pelo simples prazer da felicidade e acabam destruindo tudo de bom que a vida um dia lhe proporcionou: UMA SAGRADA FAMÍLIA FELIZ.

No dia seguinte seguiu-se o cortejo pondo um ponto final no momento triste que havia sido a história daquela família. O caixão, então, toca o solo da sepultura, onde esta, por sua vez, concretiza sua função como consoladora de almas.

Um ano depois o rapaz entra todo feliz na casa da mãe. Sua esposa tinha dado à luz. Nasce, agora, um novo membro da família. Era uma menina e chamava-se VITÓRIA, pois representava, após tantos anos de sofrimento, um consolo e uma nova esperança para aquela família. Já o jovem papai cresceu livre dos vícios e começava, após muita força de vontade, humildade, perseverança e fé, a construir um novo lar. Um lar livre do pecado e da dor desnecessária, confirmando uma verdadeira profecia da qual nunca poderemos esquecer e deixar de nos espelhar: ENQUANTO HOUVER VIDA, SEMPRE HAVERÁ UMA ESPERANÇA.

FERNANDO MAGALDI
05/05 a 13/05/2007

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